A cada crise econômica, o governo federal sempre busca adotar medidas para conter gastos, inclusive, cortando investimentos. O principal argumento sempre é o de garantir o equilíbrio fiscal. Como pano de fundo da discussão, sempre aparece a dívida pública do país. Sobre o assunto, O DIA conversou com Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional do movimento Auditoria Cidadã da Dívida. O movimento liderado pela auditora fiscal questiona os atuais números apresentados pelo governo sobre a dívida pública, diz que o déficit da Previdência é questionável e ao O DIA, Fattorelli afirmou que o crescimento dessa despesa com a dívida pública, que consome hoje quase metade do orçamento federal, é provocado pelo atual modelo político-econômico, que beneficia apenas o mercado financeiro. Uma boa leitura!
Foto: Elias Fontinele/O Dia
Qual é a principal reivindicação e qual o principal argumento que vocês do movimento utilizam para pedir a autoria na dívida pública do Brasil?
Olha, a dívida pública tem sido a justificativa para as privatizações do nosso patrimônio, para realização das contrarreformas, principalmente a da Previdência. A dívida tem sido a justificativa para o ajuste fiscal, que é corte de gastos em todas as áreas, para sobrar mais ainda para o pagamento de juros da dívida. Tanto é que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do teto elevou o ajuste fiscal para o patamar constitucional e a dívida absorve, todo ano, cerca de 40% do orçamento federal. Afeta também os orçamentos dos Estados e Municípios, então nós queremos saber que dívida é essa porque quando a gente olha o volume da dívida, não vemos os investimentos decorrentes dela, a contrapartida dessa tal da dívida pública, então a gente exige uma auditoria para que, todas as pessoas que estão pagando essa conta, que é todo o conjunto da sociedade, tenham a clareza de que dívida é essa, porque ela está crescendo sem parar, porque ela absorve tanto um volume tão grande do orçamento e apesar disso ela cresce.
Vocês acreditam nos números oficiais apresentados pelo Governo em relação a dívida pública?
A gente acredita, só que tem números que estão claramente colocados equivocadamente, como os juros. Grande parte dos juros está sendo contabilizada como se fosse amortização e isso distorce a análise, porque aí o governo vem com o discurso de que está fazendo apenas uma rolagem e substituindo os títulos que estão vencendo por novos, enganando a população com esse discurso. Então na realidade, dentro da rubrica de amortização ou rolagem, tem uma bolada de juros, e isso que está sendo feito é uma coisa muito grave. Se o governo não estivesse fazendo essa manobra de contabilizar juros como amortização, teria que dizer ao mercado financeiro: não podemos pagar esses juros abusivos, não tem dinheiro para isso.
Esse atual modelo beneficia quem, na avaliação de vocês?
Esse modelo atual só beneficia o mercado financeiro, nacional e internacional. Ele sacrifica toda a economia real, sacrifica as pessoas, sacrifica as empresas, indústria, comércio, serviços e setor público. O único beneficiário é o setor financeiro.
Por conta disso a senhora acha que há uma resistência do Congresso e do governo em fazer essa auditoria, para não enfrentar um segmento tão poderoso na economia do país, que é o setor financeiro?
Isso é um dos pontos, porque o setor financeiro financia muitas campanhas políticas e depois, é claro, vai querer que esses políticos trabalhem a seu favor, mas esse é só um dos pontos. O outro ponto é o desconhecimento total, porque não tem democracia. Acessar aqueles dados é só para quem está com muita vontade, para ficar horas e horas analisando. O acesso está cada vez mais difícil. Mesmo depois da Lei de Acesso à Informação (LAI), muitas informações que estavam disponíveis antes deixaram de estar disponíveis. Alguns setores do governo dizem que quem quiser pede. Então uma coisa que antes era disponível precisa ser requisitada. Quem é que sabe que isso é possível? Então prejudicou ainda mais, essa reforma de todos os sites, do Tesouro Nacional e do Banco Central, que reduziram e suprimiram várias informações e passaram a dizer que elas poderiam ser requeridas.
Essa auditoria pode proporcionar uma reestruturação do orçamento público, principalmente destinando mais recursos para áreas sociais?
Com certeza. De 1995 a 2015 nós produzimos um superávit de R$ 1 trilhão, esse valor até 2015, se não tivesse ido para dívida, teria organizado um outro cenário de investimentos. A partir de 2015 já não conseguiram produzir superávit, por causa da crise produzida por esse modelo, então a culpa não é do funcionamento do Estado ou dos direitos sociais, a culpa está na geração da crise, que quebrou muitas indústrias, empresas, milhões de pessoas ficaram desempregadas e, empresas fechadas e pessoas desempregadas não contribuem, não pagam tributos. Isso deu um desarranjo na economia, tanto é que nosso Produto Interno Bruto (PIB) caiu mais de 7% em apenas dois anos.
Foto: Elias Fontinele/O Dia
Qual é a relação do pagamento hoje da dívida com as políticas que os governos têm adotado, o teto de gastos e agora da reforma da Previdência, que é a pauta prioritária do governo?
A relação é direta. A PEC do teto de gastos, a Emenda Constitucional 95, não fala da dívida, mas das despesas primárias, e quase ninguém sabe o que é isso. As despesas primárias são todos os gastos governamentais com todos os poderes, executivo, legislativo, judiciário e ministério público, e todos os gastos dos serviços prestados à população, tudo isso é gasto primário. O que fica fora desse gasto? O gasto financeiro com a dívida e com as novas empresas estatais que estão sendo criadas para operar o esquema fraudulento da securitização. Então a PEC do teto é a PEC do privilégio escancarado da dívida, porque o gasto com ela ficou fora do teto, então é a PEC para amarrar e congelar tudo e sobrar mais para dívida. A relação com a Previdência também é direta. Quando o ministro Guedes fala que quer “economizar” R$ 1 trilhão, ele está dizendo que vai deixar de pagar benefícios de aposentadoria, de pensão, de auxílio, que movimenta a economia de todos os municípios brasileiros, mas em 70% deles esse valor é superior ao Fundo de Participação dos Municípios (FPM), mas quando ele fala nessa “economia”, é R$ 1 trilhão que deixará de ir para os benefícios da seguridade social para pagar juros, porque com a PEC do teto ele não vai poder investir isso em outras áreas, vai investir isso para pagamento de juros.
O Brasil passa por uma grave crise econômica. Ela tem se acentuado desde 2013 a ainda não visualizamos um cenário de retomada de crescimento, tanto que hoje o desemprego está altíssimo. Nesse período, apenas os bancos conseguem registrar recordes em seus lucros. Qual é a relação da dívida pública com esse cenário de crise econômica, que coincide com os lucros das instituições financeiras?
Isso é resultado da política monetária do Banco Central, que gera dívida pública sem contrapartida, e o recurso é transferido para o mercado financeiro. Por exemplo, R$ 1,2 trilhão da nossa dívida pública federal interna corresponde a títulos que são entregues aos bancos em troca do depósito voluntário que eles fazem no Banco Central com essa sobra dos bancos. Na medida em que os bancos estão com esses títulos, eles recebem uma remuneração diária, então esses R$ 1,2 trilhão eleva a nossa dívida, mas o dinheiro não pode ser usado para investimentos, ele não chega no orçamento, o dinheiro vaza diretamente para o mercado financeiro. E mais, isso custa uma remuneração, que levou R$ 754 bilhões nos últimos dez anos.
Na sua avaliação e do movimento auditoria cidadã, quais são as principais mudanças macroeconômicas que o Brasil precisa fazer para mudar este cenário?
Em primeiro lugar, enfrentar o sistema da dívida por meio de uma completa auditoria com participação social, porque nós estamos pagando uma conta que não é nossa. A segunda é reformar drasticamente a política monetária do Banco Central, que está sendo administrado de costas para o país, de costas para a economia brasileira e está sendo administrado para transferir trilhões, já chega na casa do trilhão, para o setor financeiro, provocando dano enorme a economia do gigante Brasil. O terceiro ponto é o modelo tributário brasileiro, que é totalmente invertido. Rico não paga imposto, distribuição de lucro não paga imposto, remessa de lucro no exterior não paga imposto. Então uma série de benesses abusivas e absurdas. Isenções, desonerações, legislação que incentiva a sonegação. Falei em primeiro, segundo e terceiro pontos, mas tudo isso tem que acontecer junto. Isso só foi para organizar a fala, mas não tem um mais o importante que o outro não, até porque são imbricados um no outro, tem que acontecer junto. E eu diria mais um quarto ponto, que eu esqueci de mencionar, que é rever essa política de exploração mineral, que aqui no Brasil tem sido feita de forma predatória, desrespeitosa em relação à natureza e ao ambiente. Ela é nociva para nossa economia por que estamos entregando os nossos minerais a troco de nada praticamente, ficando somente com dano ambiental. Então uma quarto ponto é enfrentar a dívida ecológica.
E neste cenário de discussão sobre a dívida pública, o que a senhora pontua como considerações finais?
É hora de adquirir conhecimento. O primeiro pensamento do brasileiro e brasileira ao acordar é lembrar que nasceu em um país riquíssimo. Se a pessoa pensa isso ela vai se indignar com a miséria, com a pobreza e vai ver que tem alguma coisa errada nesses orçamentos públicos, porque, como é que pode um país tão rico como o Brasil está ainda nesse atraso em termos de desenvolvimento socioeconômico, ter tanta gente desempregada quando temos tanto por fazer e temos tantas potencialidades em todas as áreas onde a gente olha. Então, é convocar as pessoas para adquirirem conhecimentos sobre a nossa realidade financeira, acessem as páginas da Auditoria Cidadã e outras, tem muitas fontes de conhecimento bacanas, mas como eu falo em nome da Auditoria Cidadã estou citando ela, não estou dizendo que isso é caminho único. Tem muito trabalho bacana de investigação, porque se nós mesmos não nos interessamos pelo nosso país, quem vai? Então temos que olhar para o país como a nossa casa, olhar para todas as pessoas como irmãos e irmãs, brasileiros e brasileiras, passarmos por cima das diferenças políticas e nos vermos como uma única nação, que tem direito a um desenvolvimento socioeconômico verdadeiro, e que todas as pessoas têm o direito à vida digna.